Esta modalidade de transplante foi usada recentemente para tratar o diabetes, mas especialistas dizem que a eficiência ainda não tem comprovação científica
Os seres humanos, quando vistos do ponto de vista da composição biológica, são seres compostos de aproximadamente 2 trilhões de células humanas e cerca de 100 trilhões de células bacterianas que habitam nosso corpo. Do ponto de vista genético, contamos com 25.800 genes ativos enquanto as bactérias contribuem com mais de 100.000 genes, que comandam a síntese de uma infinidade de substâncias capazes de influenciar vários aspectos do nosso metabolismo. Nos últimos vinte anos, a ciência tem descoberto como esta comunidade bacteriana que habita a nossa pele e todas as mucosas interagem com o nosso corpo, na saúde e nas doenças.
Grande parte das pesquisas tem sido dedicada ao sistema digestivo, principalmente o cólon, pela grande diversidade e quantidade de bactérias que compõem o microbioma intestinal. Estes estudos revelaram que a flora intestinal é um dos fatores mais importantes que regulam a permeabilidade intestinal, ou seja, a eficácia com que a mucosa intestinal é capaz de impedir que substâncias produzidas pelas bactérias penetrem o corpo através da mucosa e cheguem à circulação.
Neste sentido – e especialmente importante – é a endotoxina (LPS), produzida por bactérias Gram negativas, que por ser lipossolúvel tende a se acumular no tecido adiposo, onde ativa várias classes de células do sistema imunológico, principalmente os macrófagos, que se multiplicam e passam a produzir citocinas inflamatórias. Ocorre que estas citocinas induzem resistência à insulina, o que torna necessário o aumento da produção da insulina para manter o nível de glicose no sangue dentro da faixa normal.
Por outro lado, a flora intestinal influencia de modo marcante a quantidade de energia que obtemos a partir da dieta. Ela é capaz de transformar a celulose de uma folha de alface (zero calorias) em ácidos graxos de cadeia curta como butirato (gordura com nove calorias por grama). Deste modo, pode determinar o quanto engordamos ou não a partir de uma determinada dieta.
Obesidade e flora intestinal
De fato, sabemos que indivíduos magros têm uma flora intestinal que difere da de obesos na proporção de firmicutes e bacteroidetes, que representam os tipos de bactérias mais abundantes. Como o tipo de flora que cada pessoa tem depende de sua genética e também de sua dieta, não está claro se essa diferença entre a flora de magros e obesos é causa ou consequência da obesidade.
Experimentalmente, usando animais desprovidos de flora intestinal (“germ free”), conseguimos induzir a obesidade transplantando a flora de animais obesos ou emagrecimento transplantando a flora de animais magros. Mas quando usamos animais que tem a sua flora intestinal, os efeitos são transitórios, porque a flora que foi transplantada não consegue se estabelecer e o animal em pouco tempo restabelece sua flora original.
Esta é, provavelmente, a razão do efeito transitório e por isso ineficaz das poucas tentativas que já foram feitas de utilizar o transplante fecal (leia-se de flora intestinal) para tratar condições crônicas como obesidade ou resistência à insulina (síndrome metabólica).
Transplante de flora intestinal
No entanto, a técnica é útil quando uma mudança de flora transitória é suficiente para o tratamento. É o caso da diarreia causada por antibióticos, geralmente causada pela colonização do intestino pela bactéria Clostridium difficile. Nestes casos, a flora transplantada compete com o agente infeccioso diminuindo sua população e, após alguns dias, a flora original do paciente se restabelece e o problema inicial é superado.
O tratamento desta condição é a única indicação para o uso terapêutico do transplante fecal. Todas as outras potenciais indicações – que abrangem patologias nas quais se sabe que a flora intestinal tem uma participação relevante – aguardam o desenvolvimento de técnicas que permitem a perenização da flora transplantada.
Por este motivo, causa estranheza a publicação, pelo jornal gaúcho ZERO HORA, do primeiro transplante fecal para o tratamento do diabetes. Este foi um experimento de um paciente sem grupo controle e com um resultado anunciado de “melhora dos níveis glicêmicos horas depois do procedimento”. Como deixou claro, a manifestação da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabolismo, há várias coisas que poderiam ter causado essa melhora, como a própria mudança de dieta necessária para fazer o procedimento.
Esta divulgação pode gerar falsas expectativas e confusão, principalmente nos portadores de diabetes e seus familiares, que podem ser levados a pensar que o transplante fecal, como é realizado hoje, pode ser um tratamento para o diabetes. Essa ainda não é uma realidade.